domingo, 9 de agosto de 2015

O parto do Zé

Pára um carro apressado à porta das urgências, a porta do passageiro abre-se, lá de dentro sai uma grávida, sopra, respira, sopra.
Senta-se numa cadeira de rodas e em grande corrida é guiada através da sala de espera cheia de gente e entra directamente na sala de triagem, ela sopra, respira. Uma jovem mulher empurra a cadeira, outra mulher entra também, a correr chega o homem que conduzia o carro, entra também e atrás vem o segurança, a reclamar que só pode entrar um acompanhante. Ela sopra, ela respira.

A cena típica de parto num filme.


Mas horas antes...

A equipa tinha sido escolhida, as parteiras, a doula e o fotografo. Os miúdos sabiam do plano, nós tínhamos um plano.

A madrugada trouxe algumas contrações, a manhã chegou quente e este era o dia. O bebé estava grande, as semanas tinham passado e se ele não decidisse, nós teríamos que decidir, mas ele decidiu  que era hora.

Com a excitação própria das crianças, os miúdos ajudaram o pai a montar a piscina, a sala ficou pronta, enquanto eu divagava pela casa e saboreava cada contração que vinha e ía. Sentada na bola rebolava, respirava cada momento, cada contração era um sinal de que não faltaria muito para conhecermos o nosso 5º bebé, e estavam cada vez mais deliciosas.

As parteiras chegaram e gostaram do que viram, por agora era tempo de esperar e de relaxar tudo estava a avançar naturalmente, sairam, voltariam daí a umas horas. Havia que aproveitar o dia e assim, depois de um almoço ligeiro com os miúdos fomos deixa-los numa avó e seguimos para a praia, caminhar na areia a dois e talvez um banho de mar parecia uma boa ideia.

Entretanto a Maria, doula, e o Pico, fotografo, já sabiam que o momento estava a chegar.

A água do mar que estava gelada, as contrações que iam ficando cada vez mais intensas e o calor que fazia , pediam que voltasse para casa e me recolhesse.

A Maria e o Pico aproveitaram  a chegada das parteiras para irem dar umas corridas com os miúdos, havia que libertar a energia e adrenalina que eles tinham dentro deles, com a emoção da chegada do bebé.

Eram já quase 6 da tarde quando fui avaliada e já havia 5 cm de dilatação. O som da água a encher a piscina era tão agradável.

Entrei na água, sentei-me e sorri, era tão bom. Que sensação tão boa. Os miúdos foram-se acomodando à volta, o Paulo esteve sempre ali, a Maria sorria, o Pico devia estar empoleirado (não dei por ele, perfeito), as parteiras iam avaliando o bebé e fazendo o seu trabalho em perfeita harmonia com o que se passava.

Estava para lá daqui, onde só vai uma mulher em trabalho de parto, para onde só vamos se nos deixarmos ir,onde as sensações de prazer e dor se tocam, onde tudo à nossa volta parece uma névoa.

As horas foram passando, as contracções apertaram e fiz força, tinha vontade de fazer muita força.
Bateram à porta, um carro a trabalhar lá fora, os meus sogros que queriam saber o que se passava. Fiquei estática, de joelhos dentro de água, e assim não dava. O Paulo foi lá fora. sossegou-os, mas o carro continuava lá. Tive que gritar que assim não conseguia. acordei do transe em que estava.


Voltei a entrar, tinha que voltar para lá, só aí o meu bebé estava seguro comigo. Consegui voltar.



Fui fazendo força, e o tempo foi passando. Saí da água e entrei várias vezes, a bolsa rompeu dentro de água, andei pela casa, mudei de posição, sentia as pernas dormentes, uma dormência que me fazia tremer, e a vontade de fazer força chegava mas o bebé não.

Os miúdos a esta altura já tinham adormecido todos à volta da piscina, à volta da mãe.

Deitada na minha cama, com o Paulo, lembro-me de uma vez pensar "porra, agora já está a doer demais, apetece-me dormir e parar com isto", porque uma mulher em trabalho de parto vai onde nunca foi, sente coisas que nunca sentiu (mesmo sendo o 5º parto), quer coisas que não sabe, tem medos que não conhece, uma mulher em trabalho de parto é um animal, e os animais às vezes também querem dormir.


Sabia o que vinha a seguir, mas como? Como é que eu ia entrar num carro, assim, com as pernas dormentes e contracções de minuto a minuto em expulsivo e fazer quase 40 km até ao hospital. Mas talvez esses quilometros e solavancos fizessem com que o bebé encaixasse melhor, talvez fossem precisos.


Com calma a Maria ajudou-me a vestir, as parteiras iam avaliando o bebé, nunca esteve em sofrimento,o Paulo foi buscar o carro e no hall de casa, todos juntos olhamo-nos e saímos para a rua.

Recordo o abraço forte que o Pico me deu, ele que ficou em casa com os miúdos, do rescue que me puseram na boca ( e a todos), do Paulo branco por descobrir que o carro não tinha gasóleo, das parteiras a arrumarem tudo para levarem com elas.

Eu estava numa espécie de filme só meu. Respirava, sabia que tinha que estar tudo bem, que eu conseguia, que nós conseguíamos.

E afinal a cena de parto não era assim tão típica de um filme.

Pára um carro apressado à porta das urgências, a porta do passageiro abre-se, lá de dentro saio eu, sopro, respiro, sopro.
Sento-me numa cadeira de rodas (pedida por mim) e em grande corrida sou guiada através da sala de espera cheia de gente e entro directamente na sala de triagem, eu sopro, respiro. Uma jovem mulher empurra a cadeira, outra mulher entra também, a correr chega o Paulo que conduzia o carro, entra também e atrás vem o segurança, a gritar que só pode entrar um acompanhante. Eu sopro, eu respiro.
As mulheres que entraram comigo eram as parteiras, que em momento algum me deixaram.

Eu entro em modo leoa, fera, animal, em modo sobrevivência.

Na sala de triagem e com esta confusão, entre sopros digo que estou em período expulsivo que só preciso parir. Peço água e não me dão. Sou levada para dentro.

Guiada por uma auxiliar chego ao piso da maternidade, e sou recebida por uma cara conhecida. Ao ver a enfermeira solto um :
- Que bom que é vê-la aqui, uma cara conhecida. Preciso da sua ajuda para parir este bebé, mais nada!

Tudo é muito rápido, na sala de parto subo para a cama, dispo-me toda, vou dizendo como foi até ali, sento-me, explico que estou com a dilatação completa, e faço força uma vez, digo que está tudo bem mas que o bebé não está na melhor posição. A outra enfermeira parteira que estava na sala observa-me e confirma que ele não está na melhor posição mas que passa, posso fazer força.

Sentada na cama, coloco a minha mão para receber o meu bebé, faço força e sinto que vai nascer, mas o Paulo ainda não estava lá, assim não! Paro, espero por ele, peço-lhe a água que me tinham negado. Bebo, faço força e o bebé começa a nascer.

Gritei para que mo dessem logo, estive provavelmente 1 minuto sem ele, mas não me calei, lembro-me de gritar muito para mo darem, o meu bebé, tinha que estar junto a mim, já!
Ele chorou e veio, aninhou-se no meu peito e já não o larguei! Era um rapaz, o nosso Zé.

Assim ficamos nas 3 horas que se seguiram. Não houve mudanças de espaço, pontos, mexidas, nem picadas.
Deixaram-nos a sós, eu, o Paulo e o Zé, nu em cima de mim, tapado no meu peito, aquecido por mim. E assim tivemos o nosso momento, aquele por que tanto esperamos, aquele que tanto idealizamos, aquele que imaginamos tão diferente.

Faz hoje um ano, à hora que escrevo faz um ano que recebemos o Zé e que aprendemos a aceitar o que nos está reservado.

Esta foi a história do Zé, a história que estava reservada para ele, para nós e nós nem sonhávamos. O Zé nasceu no hospital, 20 minutos depois de lá chegarmos, sem fotos, sem irmãos, sem água, sem doula, nasceu connosco.

A Teresa resumiu bem o que aconteceu, disse-me uns dias depois do parto, talvez por me sentir um pouco triste com tudo :
- Sabes mãe, não importa onde o bebé nasceu, importa que nasceu feliz.

E que palavras tão sábias e tão certas para uma menina de 6 anos na altura.

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Mas porque a família cá de casa é esta e não é outra, houve mais para contar. Tipo as gafes nos filmes, aquelas cenas em que toda a gente se desmancha a rir, mesmo estando num parto.Ou aquelas insólitas.

- A Karim, uma das parteiras, ao descarregar as coisas do carro à nossa porta, foi picada por uma abelha, resultado, passou todo o tempo com o braço direito ligado, inchado e sem o poder mexer, sentada como guardiã.

- Assim que vou a entrar na água, oiço a a pergunta da Teresa "Mãe, lavaste os pés?" Claro, o bebé não podia nascer numa piscina com água suja,

- Na altura que entro para a piscina, a Julieta sai da sala e volta, rápida, de biquini e toalha ao ombro, pronta para entrar também, claro, se isto é para dar mergulhos, ela também quer.

- O João olha para mim, e grita "Já vejo a cabecinha com cabelo!" Confesso, a minha depilação por estes dias  não era das melhores.

- Eu a vocalizar as contracções e de seguida a ser imitada pelo João. A cada uma ...

- Mais tarde, eu a vocalizar as contracções e a seguir a cada uma o ressonar da Julieta, qual orquestra afinada.

- Na altura de me vestir para ir para o hospital, entre sopros e forças, vejo a Maria ao fundo da minha cama com umas cuecas na mão "Ana, podem ser estas?" E mostra-mas de frente e de trás. Maria, doula, amiga, sempre cuidadosa, sempre atenta aos pormenores.

- A altura em que o Paulo sai para ir buscar o carro e volta a entrar em casa, branco e diz "Acho que não estava preparado para isto" Eu, encostada à parede com as pernas dormentes, olho para ele com cara de má (lembram-se que estava com contracções de minuto a minuto e 10 dedos de dilatação) e digo " O QUÊ?" E ele diz "Não temos gasóleo" Acabamos por levar o carro da Maria e ela seguiu depois no nosso, já com gasóleo.

- A rodada de rescue remedy à saída de casa. Eu, o Paulo, as parteiras e a doula, só faltou mesmo o fotografo.

- O momento em que chegados ao hospital uma das nossas parteiras ainda disse para o Paulo "podemos tentar aqui fora se quiserem" Pena que eu não ouvi, acho que tinha alinhado, a noite estava boa e quem sabe o jardim do hospital era o local perfeito.

- A enfermeira da triagem que me diz que não posso beber água "Vá por mim, é melhor para si, eu sei o que digo " Diz-me ela e eu grito " eu é que sei já é o 5º que tenho!!". Mas não me deu a água.

- A auxiliar que me levou pelos corredores, elevador e portas e conseguiu bater com a cadeira de rodas em todas as esquinas e portas. Imaginam o que isso é  para uma grávida com contracções de minuto a minuto e em período expulsivo

 - A auxiliar que me quis vestir uma bata e eu só lhe gritei "Não quero nada disso" E nua fiquei e pari!

- O Paulo que quando chegou trazia outra auxiliar atrás dele a querer a primeira roupinha do bebé, e ele só diz "não há tempo para isso, já estou a ouvi-la gritar lá dentro!"

- Eu que volto a gritar que quero água e as enfermeiras dão um pacote de compressas ao Paulo para ele me molhar os lábios. Mas como já somos prós nisto, ele encheu o pacote de água e eu emborquei-o todo de seguida! Finalmente água!

- O momento em que eu e o Paulo percebemos que nem uma máquina levamos para tirar uma primeira foto ao Zé.

Parabéns Zé, já passou um ano. Grata por nos teres ensinado tanto e mostrado que há tantas coisas que nós não controlamos.
















Fotos do trabalho de parto de João Pico

3 comentários:

  1. Ana, que relato tão bonito. As palavras da Teresa comoveram-me, de facto o que importa mesmo é que os nossos filhos nasçam bem e sejam muito felizes. Um beijinho de parabéns de uma leitora que gosta de acompanhar a sua linda família. Isabel

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  2. metade...ou melhor um décimo da sua coragem era aquilo que eu desejava para o meu parto! Mas não! Disse sempre "amén" às exigências das enfermeiras! Estivesse eu mais perto do algarve e sei bem quem me tinha acompanhado!
    Família mais linda!

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  3. Tive dois filhos em modo "hospital", acredito que os seus são um "verdadeiro parto", ainda assim senti-me feliz e aliviada com os meus, apesar de as emoções de nada contarem numa maternidade! Chorei de emoção e alegria ao ler o seu relato! Parabéns pela linda família, e sobretudo pela coragem! ♡

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